Encontrar um lugar de palavras

<i>Armadilha, de Rui Nunes</i>

Domingos Lobo

A vi­agem, a úl­tima vi­agem? Há um ca­minho, a pés nus, que o olhar, mesmo cego, teima em per­correr, teima em so­le­trar para re­a­prender. Uma vi­agem que se faz ao mais es­quivo ter­ri­tório da me­mória, por dentro de um chão, ou sobre ele, da po­ro­si­dade das pa­la­vras. Pa­la­vras de ar­re­messo, como fogo, como de­sis­tência. Ir ao fundo, per­correr os ca­mi­nhos nessa agressão cons­tante de estar vivo e atento, e com os olhos a cegar, lenta, ine­su­ra­vel­mente. Mas achar a pa­lavra, as pa­la­vras e essa eter­ni­dade es­quiva que nelas ha­bita, que com elas, so­le­trando, achamos: um sen­tido, mesmo que ab­surdo, uma pa­lavra que nos li­mita a algum chão, o da in­fância, o dos lu­gares em que as raízes sobem da terra e nos acossam, ou ou­tros no vasto mundo. Um sinal que nos iden­ti­fique, uma es­trada, um muro, uma pa­lavra, ou um nome para o oculto, forma de ven­cermos Deus, ou os deuses – os deuses que in­ven­tamos com pa­la­vras, ca­mi­nhando com elas, sobre fe­ridas. Cons­truímos deuses como cons­truímos

Temos, deste modo, um en­saísta que se move com cla­rís­simo à-von­tade pelos ter­ri­tó­rios de uma es­crita que tem sus­ci­tado junto de al­guma crí­tica di­versas in­ter­ro­ga­ções, per­ple­xi­dades, ade­sões e afas­ta­mentos. Não é um uni­verso de fácil aná­lise, de res­posta pronta às ques­tões her­me­nêu­ticas que essa es­crita per­ma­nen­te­mente co­loca, como os não serão os de Maria Velho da Costa, Maria Ga­briela Llansol ou Ma­falda Ivo Cruz, es­te­jamos ou não em con­cor­dância com essas re­pre­sen­ta­ções e o modo de as trans­portar para a li­te­ra­tura, so­bre­tudo quando essa li­te­ra­tura é pe­ri­fé­rica e pre­cisa, para se afirmar, de alargar o seu es­paço de in­fluência.

O crí­tico é aqui con­vo­cado, nesse ter­ri­tório es­quivo, la­bi­rín­tico e ir­real de Ana Te­resa Pe­reira, para um per­ma­nente exer­cício de con­tro­vérsia in­ter­pre­ta­tiva, dado que toda a aná­lise sobre um texto li­te­rário é es­pe­cu­la­tiva, sobre textos a um tempo sin­gu­lares, se­du­tores e de com­plexa con­fi­gu­ração te­má­tica. Nada, por­tanto, de in­co­men­su­rável, que de­tenha Du­arte Pi­nheiro, que lhe tolha o per­curso e a ca­pa­ci­dade ana­lí­tica que os es­cusos sim­bó­licos destes ter­ri­tó­rios fic­ci­o­nais lhe im­peçam a pro­gressão e a lu­cidez in­ter­pre­ta­tiva, bem pelo con­trário.

A so­lidão, as som­bras, a iden­ti­dade, as fic­ções dentro da ficção, os textos afins e in­flu­entes. Eis o en­saísta no seu ter­ri­tório de eleição, qual seja o de des­bra­vador de som­bras, o pes­qui­sador de res­so­nân­cias. Função plena e sen­si­ti­va­mente cum­prida.

In­de­pen­den­te­mente da im­por­tância da obra de Ana Te­resa Pe­reira no con­textos da ac­tual li­te­ra­tura por­tu­guesa (e aqui po­de­ríamos es­pe­cular sobre essa es­pe­ci­fi­ci­dade, ou seja, há um tempo nar­ra­tivo por­tu­guês, existe uma li­te­ra­tura que se afirma numa de­ter­mi­nada língua e isso lhe basta, ou uma língua impõe uma lin­guagem e esta um ima­gi­nário con­cor­dante – a língua como iden­ti­dade e em função de uma de­ter­mi­nada ge­o­grafia –, ou, como Saus­sure afirma: To­mada no seu todo, a lin­guagem é mul­ti­forme e he­te­ró­clita; a ca­valo sobre vá­rios do­mí­nios, ao mesmo tempo fí­sica, fi­si­o­ló­gica e psí­quica, per­tence ainda ao do­mínio in­di­vi­dual e ao do­mínio so­cial; não se deixa clas­si­ficar em ne­nhuma ca­te­goria dos factos hu­manos, porque não se sabe como des­tacar a sua uni­dade.1) ques­tões que a obra de Du­arte Pi­nheiro torna la­te­rais pela razão sim­ples de que as obras sobre as quais in­cide o seu es­tudo se afastam, na abor­dagem es­tru­tural de afir­mação, desses pres­su­postos, pre­fe­rindo co­locar em con­tra­ponto a dis­se­cação te­má­tica sobre os aflu­entes do uni­verso pe­rei­riano: Henry James, Jo­seph L. Man­ki­ewicz, Daphne du Mau­rier, Rilke e Iris Mur­doch, da qual ainda re­cen­te­mente saiu, na Re­lógio d´Água, o ro­mance Sob a rede. De igual modo o en­saísta pro­curou com­po­nentes de in­ter­li­gação com­pa­ra­tiva na aná­lise mais por­me­no­ri­zada dos ro­mances de Ana Te­resa Pe­reira, Matar a imagem, O rosto de Deus, Se nos en­con­trarmos de novo e O Verão sel­vagem dos teus olhos. A estes au­tores jun­taria, no que aos po­li­ciais (ou para po­li­ciais) diz res­peito, so­bre­tudo ao Matar a imagem, ainda traços de con­fi­gu­ração com Ruth Ren­dell e Pa­tricia Highs­mith.

Platão me­no­ri­zava os po­etas por sus­peitar que estes «imi­tavam tudo». Du­arte Pi­nheiro não aborda, como que in­tuindo um pudor que a sua exem­pla­ri­dade ana­lí­tica não elege como pro­vável, esta ver­tente. Pre­fere, e bem, sub­meter essa aná­lise ao con­fronto com os textos alheios que serão afins dos textos da au­tora em causa e partir em busca dos axi­omas kan­ti­anos que in­vadem, em pers­pec­tiva ex­pe­ri­mental, a lin­guagem dessas obras, o seu mo­der­nismo psi­co­lo­gista e me­ta­fí­sico. Um po­si­ci­o­na­mento to­le­rante face ao ra­di­ca­lismo pla­tó­nico. Du­arte Pi­nheiro per­corre os enigmas, os sin­tagmas, as almas que a au­tora ma­dei­rense cons­trói e nos de­volve em ne­bu­losa de es­pe­lhos con­cên­tricos como se a busca in­ci­disse, em pa­ra­lelo, sobre os frag­mentos de um eu pes­so­anos. O en­saísta sabe, como o per­so­nagem Jake de Sob a Rede que «toda a lin­guagem é uma má­quina de fa­bricar en­ganos».

A obra de Ana Te­resa Pe­reira, con­cre­ta­mente os textos ana­li­sados neste opor­tuno en­saio, como de resto os de Maria Ga­briela Llansol, se afastam na sua es­tru­tura or­gâ­nica e con­cep­tual da re­a­li­dade que a língua em que es­crevem de­veria, ou antes, po­deria re­flectir, dado que este en­saio apa­rece num tempo em que é ne­ces­sário di­a­logar sobre os ca­mi­nhos da nossa ac­tual pro­dução fic­ci­onal, ca­bendo ao crí­tico a ta­refa in­gente e co­ra­josa de de­nun­ciar os em­bustes em que essa li­te­ra­tura se deixou en­redar vi­vendo, no grosso da sua pro­dução, da­quilo que An­tónio Guer­reiro de­nun­ciou como sendo da venda ao quilo de papel im­presso.

Os la­bi­rintos da du­pli­ci­dade da per­so­nagem, o au­to­di­e­gé­tico desse mo­delo nar­ra­tivo e as sín­cronas in­fluên­cias, essa mi­mé­tica forma de cons­trução fic­ci­onal, se ex­pressa em cír­culos face aos mo­delos que lhe servem de an­co­ra­douro. O que é es­crever bem, cer­tinho e apru­mado, a piscar o olho ao des­pre­ve­nido leitor? Ana Te­resa Pe­reira bor­rifa-se, e o autor do es­tudo que ana­li­samos faz coro. Sabem ambos que es­crever é um acto so­li­tário, de si para si; um diá­logo de som­bras – uma forma mais de voar sem rede. Daí en­tender este es­tudo de Du­arte Pi­nheiro de uma ex­trema sa­geza, da in­te­gração atenta dos textos ana­li­sados nesse uni­verso amplo, ex­ce­dendo essas re­fe­rên­cias, e am­pli­ando os seus sig­ni­fi­cantes. O autor in­veste sobre pro­cessos nar­ra­tivos su­ce­dâ­neos de ou­tros, exis­tindo em con­so­nância de­ri­vante com ou­tros ter­ri­tó­rios afins, não em ab­so­luto li­te­rá­rios, sobre os quais a língua in­dí­gena pa­rece ex­posta de forma ir­real, algo per­plexa, face às mo­du­la­ções sin­tác­ticas que lhe são exi­gidas. Nada que o autor, pers­picaz, não tenha per­cep­ci­o­nado com ar­gúcia pro­pondo ou­tras re­fle­xões, ou­tros modos de abor­dagem não apenas dos textos ana­li­sados mas, di­a­lec­ti­ca­mente, sobre as pre­po­si­ções do seu pró­prio es­tudo: foi esta ideia de um mundo som­brio, cons­ti­tuído por es­pec­tros e fan­tasmas, e por onde a per­so­nagem pe­rei­riana tem de atra­vessar para atingir e des­velar o co­nhe­ci­mento da sua iden­ti­dade, o âmago da ver­da­deira re­a­li­dade, que ten­támos ilus­trar com o epí­teto: Além-som­bras: Ana Te­resa Pe­reira. Aquela que po­deria ser con­si­de­rada uma ex­plí­cita imagem pla­tó­nica é, afinal, muito mais do que isso; quer para nós lei­tores, quer para a per­so­nagem pe­rei­riana, o co­nhe­ci­mento está me­ta­fo­ri­ca­mente para além das luzes, talvez no mundo das som­bras se possa en­trever algo, mas está também apara além delas. Por isso este texto deve ser mo­tivo de dis­cussão e re­flexão, sendo que cons­titui igual­mente um meio para me­lhor atra­ves­sarmos o som­brio mundo de Ana Te­resa Pe­reira.2 A função do crí­tico, do en­saísta, não po­deria ser mais ex­plí­cita.

O que en­tendo mais re­le­vante nesta obra de Du­arte Pi­nheiro ra­dica na aná­lise, quase ob­ses­siva, como ob­serva Rui Es­trada na Nota In­tro­du­tória, dos tó­picos nu­cle­ares do corpus efa­bu­la­tório de Ana Te­resa Pe­reira. É o seu sen­tido do duplo, da so­lidão, do quase ute­rino das per­so­na­gens e da frag­men­tação da iden­ti­dade, de sen­tido pes­soano, essa cos­mo­ci­dade das som­bras, que con­voca mais de­mo­ra­da­mente a aná­lise pros­pec­tiva do en­saísta, ca­mi­nhos que o autor per­corre e pes­quisa com mais acui­dade e rigor crí­ticos.

Que o tra­balho do es­critor é, como a pró­pria Ana Te­resa Pe­reira afirma, um pro­cesso «vam­pi­resco», esse facto, que Du­arte Pi­nheiro não deixa de ana­lisar com mi­núcia neste en­saio, não deve con­tudo con­duzir à mi­mese (aqui mais no sen­tido da en­ce­nação, de uma en­ce­nação a partir de uni­versos con­fli­tuais alheios, aos gostos li­te­rá­rios, ci­né­filos e ou­tros, co­muns às di­versas per­so­na­gens – uma, duas, múl­ti­plas – que per­correm os textos em aná­lise, numa con­glo­me­ração de trevas, de abismos, de cír­culos em per­ma­nente ebu­lição), ao es­pelho po­lié­drico dos re­tornos frag­men­tados, da iden­ti­dade ra­re­feita, das re­dun­dân­cias de uma li­te­ra­tura que em si mesma se retém e se ali­menta. Es­crever tornou-se para mim o único re­médio para a in­sónia, es­creve Maria On­dina Braga no ro­mance A Per­so­nagem. De modo oposto, Ana Te­resa Pe­reira es­creve para se sentir des­perta, não digo viva, mas des­perta às pul­sa­ções de um tempo, de um tempo in­te­rior, pes­so­a­lís­simo, a per­sona, mesmo quando esse tempo existe em sus­pensão, da ple­ni­tude das at­mos­feras que con­voca, das me­mó­rias que andam nos li­vros, das pa­la­vras, mesmo quando estas per­correm um fundo de trevas e trans­portam res­so­nân­cias de abismo.

Uma li­te­ra­tura que se com­praz na imagem, nas ima­gens, e cir­cu­lar­mente a co­teja ou a ilide, e na su­bal­ter­ni­dade face a ou­tros re­fe­rentes (ao ci­nema, à pin­tura, a ou­tras fic­ções) existe como ob­jecto au­tó­nomo, como obra a que ainda pos­samos, neste início tur­bu­lento do sé­culo, chamar ro­mance? A dis­persão das pa­la­vras, a sua vo­la­ti­li­dade, a sua con­subs­tancia me­ta­fó­rica, cons­trói a iden­ti­dade efa­bular que urde o ob­jecto fic­ci­onal – esse «conto de fadas» que a au­tora diz ser o que es­creve? A estas e ou­tras per­ple­xi­dades com que se de­bate o leitor comum res­ponde este en­saio de Du­arte Pi­nheiro de forma lú­cida e as­ser­tiva.

Par­tindo de A Lição, de Ro­land Barthes, Ma­nuel Gusmão afirma: «A li­te­ra­tura dis­se­mi­naria em si os sa­beres, ao mesmo tempo dis­si­mu­lando-os e en­ce­nando-os, e per­mi­tiria mesmo an­te­cipar sa­beres pos­sí­veis»3. A obra de Ana Te­resa Pe­reira anda por estas ve­redas, a dos sa­beres pos­sí­veis, ou seja, sem a pre­sunção de abarcar todos os sa­beres e trans­portá-los em baú eva­nes­cente para a corpus li­te­rário e Du­arte Pi­nheiro sabe-o e dis­seca-o. Ve­jamos ainda Jo­nathan Culler: uma vez que a li­te­ra­tura toma toda a ex­pe­ri­ência hu­mana é, par­ti­cu­lar­mente, a or­de­nação, a in­ter­pre­tação e ar­ti­cu­lação da ex­pe­ri­ência, não é por aci­dente que os mais va­ri­ados pro­jectos teó­ricos en­con­tram in­for­ma­ções na li­te­ra­tura e que os seus re­sul­tados são re­le­vantes para pensar acerca da li­te­ra­tura».4

 

1 Saus­sure, ci­tado por Ma­nuel Gusmão na obra Uma Razão Di­a­ló­gica, p.77 – Ed. Avante – 2011

2 Du­arte Pi­nheiro, Além Som­bras: Ana Te­resa Pe­reira, pp235 – Lisboa, 2011 – Ed. Fonte da Pa­lavra

3 Ma­nuel Gusmão, Uma Razão Di­a­ló­gica, p82 – Ed. Avante

4 Jo­nathan Culler, ci­tado por Ma­nuel Gusmão na obra «Uma Razão Di­a­ló­gica» – Ed. Avante, Lisboa, 2011



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